O sal das Palavras



Catálogo livro  de Achille Bonito Oliva


                                                                                                                               Resenha                                        
                                    O sal das palavras

Flavia Wass

BARTHES, Roland.  Aula, escritos sobre a aula inaugural da cadeira de semiologia literária do colégio de França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977, Tradução Leyla Perrone. São Paulo. Editora Cultrix.
BARTHES, Roland. O Prazer do texto. Tradução J. Guinsburg. São Paulo. Editora Perspectiva. 1987


             
            Se não fosse seu nome Roland Barthes e abaixo sua biografia em letras gigantes, quem não sabia desta sua faceta de pintor poderia supor que a exposição Intermezzo não seria naquele espaço. Era meados de março, precisamente 2004 e por sorte ou destino aquela foi uma das experiências mais ricas ao adentrar o salão, depois de escalar infindáveis degraus largos e aristocráticos e passar por caminhos estreitos, salas após outras e enfim um pano preto obrigando quem quisesse entrar atravessá-lo. As duas mãos romperam o pano negro e um clarão indica a grandeza do evento pela quantidade de luzes e num extremo sistema organizado. Três palavras acenderam: Sistema, organização e linguagem! A partir dali à direita, primeiras duas salas repletas de 34 pinturas e desenhos. No Museo Nazionale del Palazzo di Venezia, em Roma, Itália. Uma mostra em homenagem ao intelectual, mestre da Semiótica e sabia bem o que fazer com as palavras, aliás, dizia em sua obra a Aula, que estas deixam de ser meros instrumentos e são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores, onde a escritura faz do saber uma festa. Porém, em O prazer do texto complementa esta noção da “palavra”, pois a língua segundo o autor especialista em signos reconstrói em outro lugar pelo fluxo apressado de todos os prazeres da linguagem. E neste mesmo livro pergunta ao seu leitor aonde seria este lugar de reconstrução da língua? E ele mesmo responde: - No paraíso das palavras!
          É certo, sem sombra de dúvida, ali naquele lugar das artes porque não ousar dizer paradisíaco rodeado de painéis brancos compostos por páginas da sua densa produção, que acolhiam os visitantes dar-se-ia a verdadeira lição, ou melhor, como Barthes usa o termo em sua Aula, uma “excursão” do saber! Dizia ser o ensino opressivo não pelo saber ou a cultura, a qual veicula, contudo são suas formas discursivas e como é proposto. Assim, ao escrever ou ao ensinar o principal deste ato de desprendimento é ao escrever, a fragmentação e ao expor, a digressão e isto resumia a palavra “excursão”. Um desenrolar barthesiano de idas e vindas de um desejo, onde a pessoa apresenta e representa sem fim. Por outro lado, em O prazer do texto contribui nessa tessitura (leitura) e da apreensão dos saberes quando Barthes atribui o significado da palavra texto:


[...] quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. (BARTHES, 1987, p.82)


              
             Os trinta e quadro desenhos em técnica mista abstrata, sobretudo sinais formando milhares de fragmentos sob os holofotes da linguística e da semiótica indicavam o caminho da linguagem destas teias traçadas e alcunhadas, através dos signos. A narrativa daquele evento estava tramada num enredo trançado pela escrita, símbolos gráficos, fotografias e culminava com a voz do autor. Como se quisesse justificar o que faz com a “palavra” ou o que esta provoca no pintor, amante da fotografia, da moda, das artes, além de escritor, sociólogo, filósofo, crítico literário e um dos teóricos da escola estruturalista, Roland Barthes desabafa: “a palavra me oprime com a ideia que farei qualquer coisa com ela. É uma emoção, o tremor de um fazer futuro, algo como um apetite, um desejo que transtorna todo o quadro imóvel da linguagem”. (BARTHES 2004) A pintura de Barthes parece remeter ao “jogo” da sua teoria da linguagem que vêm em forma circular de fragmentos e é justamente, neste aspecto, que suas obras O prazer do texto e a Aula se incidem, nos signos, quase sempre um dizer obsessivamente caracterizado por sinais labirínticos, percursos indissociáveis ou por sua geometria exata ao lidar com a matéria viva. Um “dialeto” aberto que empurra ao debate dando ao sujeito a liberdade de pensar, imaginar, sair da zona de conforto como uma leitura feita pelo “sujeito anacrônico”, “clivado” e dividido, que segundo o autor de O Prazer do texto, anacronismo este daquele detentor desta façanha. O individuo que concilia o ato de ler os dois textos, mantendo o comando do prazer e da fruição, no primeiro participa do “hedonismo profundo de toda cultura” e no segundo “frui da consistência de seu ego” e permite perder-se.
           No entanto, os enormes painéis brancos fazendo o fundo para escrita em negro parecia uma provocação, onde cada palavra na horizontal ou na vertical, parágrafos inacabados, frases sem início e nem fim. Assim, os progressos e avanços dos pés num chão invisível, inseguro insistiam em continuar pela curiosidade do que estava sendo apresentado, tal como ler a Aula. Este livro é o resultado de uma aula magna, intitulada Leçon, pois em 1978 inaugurava no Collège de France, a cadeira de semiologia literária e coordenada pelo ilustre autor Roland Barthes, justo neste contexto dizia que a língua devia ser combatida, desviada e não pela mensagem da qual ela é instrumento e sim pelo “jogo das palavras de que ela é o teatro”. Ao mesmo tempo, em O Prazer do texto, ao explicar a palavra “fruição”, aquela leitura que faz balançar as bases remete à própria maneira barthesiana de estabelecer o “jogo” dos “signos”.  Uma história onde a literatura, o texto barthesiano e sua teoria reafirmam o seu papel de obra de arte, quando faz das palavras o sabor a ser degustado com prazer nos usos das linguagens. Melhor dizendo, a literatura para Barthes é arte! Poderia isto ser identificado ao usar o termo “trapaça” em Aula: o que é capaz de tirar do prumo, usar de artifícios ou escutar a língua longe dos poderes ideológicos, onde Barthes chama de “revolução permanente da linguagem”? E de que forma esta linguagem pode se apresentar? No caso da literatura, o autor indica “a prática de escrever”, no entanto, a literatura não se limita somente ao texto de um livro. A escrita/texto está presente no teatro, num outdoor, na bula de um remédio, numa galeria de arte ou num desfile de moda. Agora, o que ela provoca no sujeito? No cotidiano as leituras são frívolas, rápidas e acompanham a velocidade dos afazeres mecânicos da sociedade moderna.  Talvez, este dia sempre chegue O prazer do texto, cedo ou tarde vêm à necessidade de afrouxar o cinto, tirar os sapatos, desarrumar os cabelos e transgredir, uma “[...] urgência em desparafusar um pouco a teoria, em deslocar o discurso, o idioleto que se repete, toma consistência, em lhe dar a sacudida de uma questão. O prazer é essa questão”. (BARTHES, 1987, p. 83) Seria o caso de pensar a literatura realmente como um “jogo”, Barthes exemplifica na sua lição a Aula o “teimar com a língua”, “não ceder” e reafirmar o carácter irredutível da literatura.  Talvez, esteja se referindo àquela que desloca o sujeito, a linguagem e o transporta para o inesperado ao inverso da cultura de massa que ameaça soterrar de vez o individualismo, além de afetar os sujeitos de forma alarmante em sua capacidade de percepção, conforme tese da estudiosa e literata Camille Paglia:

A vida moderna é um mar de imagens. Nossos olhos são inundados por figuras reluzentes e blocos de texto explodindo sobre nós por todos os lados. O cérebro, superestimulado, deve se adaptar rapidamente para conseguir processar esse rodopiante bombardeio de dados desconexos. A cultura no mundo desenvolvido é hoje definida, em ampla medida, pela onipresente mídia de massa e pelos aparelhos eletrônicos servilmente monitorados por seus proprietários. A intensa expansão da comunicação global instantânea pode ter concedido espaço a um grande número de vozes individuais, mas, paradoxalmente, esta mesma individualidade se vê na ameaça de sucumbir. (PAGLIA, 2014, p.4)               

Portanto, fruto desta enxurrada de elementos desconexos o problema consiste no que Roland Barthes chama de intertexto, que é a impossibilidade de viver fora do texto infinito. A necessidade de estar entre uma margem e outra seja ela a tela da televisão, de um clássico da literatura ou hoje, navegando na internet faz este livro ter sentido, o sentido da vida. O lugar, onde existe a perda, uma brecha, uma escapada, o que o autor chama de “fenda” e a cultura e os discursos ideológicos o adverte: “Fumar faz mal à saúde” ou ao “Beber não dirija” ao impor uma margem, o the end, o fading do cinema, ao fechar a página do livro, ao sair do teatro, o sujeito retorna à realidade das vozes polifônicas e retoma seu cotidiano caótico e limítrofe.
          Contudo, tanto O Prazer do texto como a Aula, não estão colocando de um lado os estruturalistas (cientistas, pesquisadores), um Barthes apolíneo (clássico, metódico, científico) e do outro, escritores e ensaístas, um Barthes dionisíaco (anárquico, erótico ou sensual), apesar de que O Prazer do texto transpareçam estes dois lados e porque não dizer que a Aula indica a solução. O que fica claro em A aula e o que está propondo é um novo paradigma, onde for que a escrita se estabeleça, que coexistam “saber e sabor”, duas palavras em latim com a mesma etimologia, bem exemplificado em a Aula por Barthes. O gosto, que faz o “saber profundo e fecundo” e assim, jamais alguém poderá reclamar de estar degustando algo sem sal, o “sal das palavras”.

Flavia Wass jornalista e especialista em Comunicação Organizacional e Ciências Organizativas com Master pela S3 Studium, escola de Roma coligada a Universidade La Sapienza de Roma, Itália. Cursou Belas Artes na Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS, anterior ao curso de jornalismo. Pesquisadora das Letras estrangeiras Italiano pela Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC. flaviawass@gmail.com Florianópolis Brasil.


Referência Bibliográfica

BARTHES, Roland.  Aula, escritos sobre a aula inaugural da cadeira de semiologia literária do colégio de França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977, Tradução Leyla Perrone. São Paulo. Editora Cultrix.BARTHES, Roland. O Prazer do texto. Tradução J. Guinsburg. São Paulo. Editora Perspectiva. 1987BARTHES, Roland. Intermezzo. Achille Bonito Oliva. Roma/Itália. Editora Skira. 2004PAGLIA, Camille.  Imagens Cintilantes, Uma viagem através da arte desde o Egito a Star Wars. Tradução Roberto Leal Ferreira. Rio de Janeiro. Editora Apicuri. 2014



            

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