O Derradeiro em Mario (s) de Andrade

Mário de Andrade

Por Flavia Wass jornalista

Fadado pelas rupturas, o que estava por terminar, assim seguia andarilho na trilha de sons, imagens, gestos, histórias, rumores, no rastro do seu instinto inscrito na sua verdade poética. Andrades,  existiram muitos, mesmo em sua época, Carlos, Drummond, Oswald, mas Mário somente um, o qual foi eleito desde o princípio para marcar época.
Acompanhado por suas várias facetas, a curiosidade levou Mário de Andrade longe, no caminho do desconhecido deparando-se com o múltiplo dele mesmo. Esmiuçando o “Eu” tornando-se único em vários.
O rasgar da sua escrita anuncia o final, mesmo em tom maior, quando lírico, gritava um murmúrio derradeiro, talvez a urgência transformadora em algo farejado no real. A necessidade identitária batucou forte nas letras andrandianas, a ponto de se fazer ouvir no mais improvável personagem.
Usou e entrou de cabeça no emaranhado chamado alma. Ousou a palavra inconsciente partindo o inteiro, o completo, tornando este evento freudiano sua meta na trajetória pintada de vermelho, onde o rubor em sinal de alerta faz nascer um humano complexo.
Partido pelas angustias da vida moderna deixa para trás o linear. Apesar, das insistências mundanas de outrem em organizar o caótico na metrópole, ignora estes preceitos com ares baudelerianos. Instiga, questiona e não aceita mastigar restos antropofágicos de uma cultura devoradora alheia á sua.
Lança mão usando todos os elementos disponíveis. À ferro, fogo e sangue mergulha em águas, atravessa rios e encharca linhas com anotações vinda aos borbotões como lágrimas rolando, não poupa esforços e espreme à última gota no nascimento rapsodico, prosaico, poético, fotográfico, em cada obra, ali estendida, inacabada à espreita da espera de uma próxima letra, sílaba, que dará vida à palavra, frase, texto num pretexto incontrolável em expressar algo de um mundo qualquer aos pedaços. Há uma gota de sangue em cada poema, seu primeiro poema, apesar dos resquícios de um parnasianismo anuncia a que vinha.

Assim como há resquício de barro
Nas estradas asfaltadas
E ruínas pelo impacto das guerras
e catástrofes
Há em cada poema uma lágrima;
Assim como ecoa aplausos e vaias
Da grande semana!  Onde sobra
Pedaços mastigados na antropofagia
Mário não desperdiçaria uma idéia
Sem que esfacelasse fontes, rituais e oferendas.
Há uma gota de suor em cada letra
E em cada verso um gozo de dor
Por que sempre a dor do poeta?
Simples…  É exatamente aí que sucumbi
As mágoas de exprimir pelo dom;
E despedir a força vital paulatinamente…
Mas há de deixar cada poeta, em cada página seca
A ata boêmia, idéia difusa e
sua vida latente!

 Incansável, os anos foram passando e a última estrofe não chegava nunca, vinham outras e mais outras. Desorganiza gavetas, desarruma o funcional na burocracia diária. Segue servindo o social. Arruma o tempo numa mágica extraordinária no ordinário cotidiano e faz brotar contos, cartas, romances, poemas, artigos, criticas oriundas, daquele multifacetado, por vezes estropiado, porém apruma-se  sem deixar-se envolver pelas mazelas das instituições. Cultiva ,  guarda e estimula raízes não deixando-se contaminar.
Num adeus às formas, delimitadas por um passado mimético platônico, o parnaso limítrofe esvaía pedindo passagem ao poetar livre somado às contingências da comunidade abre uma vala ao pesquisador das suas origens. Estaria sofrendo do que Derrida chama de uma febre de Arquivo? É arder de paixão, segundo o filósofo. É procurar incessantemente o arquivo onde ele se esconde. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa. “Impaciência absoluta de um desejo de memória”, o mal de arquivo é, portanto, uma paixão do arquivo.
 Cria com isto um ambiente pleno de brasilidade, a “simmund’ splitzeriana,, a atmosfera, em linguajar eco-brasileiro, um micro clima capaz de celebrar seus ritos, mitos e porque não dizer conflitos peculiares de um povo carente em reconhecer sua língua, tradição, costumes, mitologias, seus heróis e hinos mantidos ao longo do tempo  em velado cativeiro. Nada é menos garantido hoje, diz Derrida, que a palavra arquivo, e nada é mais perturbador: a perturbação do arquivo é “a perturbação dos segredos, dos complôs, da clandestinidade, das conjurações meio públicas, meio privadas, entre a família, a sociedade e o Estado”. Perturbação é aquilo que turva a visão, que impede de ver e saber. A perturbação do arquivo deriva do mal de arquivo.
Ao mesmo passo, uma espécie de renascimento tardio em terra Brasis vislumbra um expansionismo em todas as áreas. Observar o quanto aqueles séculos, dezesseis  e dezessete  foram o prenuncio do modernismo, embora talvez fosse inconsciente estava latente e assimilado. Que nação não bebeu nesta fonte?  Bíblico tratado político,  O Príncipe, do italiano Maquiavel. Assim como, o poeta Ariosto com seu famoso Orlando O furioso, Torquato Tasso e sua Jerusalém Libertada.
Em Ludovico Ariosto a poesia é vista como espaço privilegiado do diálogo entre a razão e a loucura, explica o tradutor Pedro Garcez Guirardi, em nota. Continua Garcez, se contra as teorizações abstratas, Maquiavel defende a autonomia do pensar político, também Ariosto diante da emergência das teorizações retóricas, defende a autonomia da criação artística. Daí a importância que atinge, no Orlando Furioso, o trabalho artesanal do poeta, pois é dele que dependerá a criação do mundo, onde ambas as interlocutoras possam reconhecer-se. De um mundo que tenha a beleza ponderada pelo sentido, mas também a beleza imponderável da loucura.
Isto que levou Ariosto a ser artista como poucos, e a entusiasmar outros artistas. De todos estes admiradores de Ariosto, o mais conhecido é talvez Cervantes. Deixando de lado as diversas referências a Dom Quixote ao Orlando Furioso, recordemos somente o trecho, em que diz que o poema de Ariosto em italiano merecia ser erguido sobre a cabeça, como  se faz com a liturgia nas sagradas escrituras. Outro admirador excepcional da arte de Ariosto foi Voltaire. Entre nós, Manuel Bandeira conta a Mario de Andrade ter relido “com delícia o Ariosto e o Tasso”. E continua: “Por alguns dias vivi encantado com estes versos do Orlando” e passa a citar em italiano o fecho da VIII em que se descreve a fraude. Por acrescentar à voz de grandes escritores, a de um notável crítico atual, citemos o já lembrado Erich Auerbach, para quem Ariosto é “um dos poetas mais puramente artistas de todos os tempos”, todo o espírito da renascença, acrescenta Auerbach, está em seu poema, “cuja leitura é um dos prazeres mais perfeitos que a literatura europeia nos oferece”.
A prosa, desenvolveu-se a partir destes nomes na literatura italiana, acompanhada  das descobertas na ciência, o homem passa a ser o centro, a cosmologia de Galileu  e o filósofo Giordano Bruno, avançam em contraposição ao fixo, ao finito aristotélico. Ou seja, aumenta o interesse pelos mistérios da natureza e deste novo homem com o desenvolvimento da filosofia na forma de diálogos. Desde então, a conversa do literário contém “ o derradeiro destino do universo”, termo usado pela cosmologia física, que desencadeia a principal questão da mítica hamletiana reformulada: o que somos, para onde vamos e até quando?
Imbuído deste espírito, apesar  da convivência em ambiente burocrático, ou até porque encontrava-se nesta condição, o funcionário público Mário de Andrade experimenta na pele e  “in loco” as artimanhas do poder, igualmente ao escritor “cinquecentesco”, Nicolau Maquiavel.
Já consagrado, o autor da Paulicéia Desvairada, quatro séculos mais tarde, vislumbra ainda mais, em profundidade, simetria e perspectiva. Enxerga luz renascentista. Em “Lundu do escritor difícil” indica a pré-disposição.

Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.

Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.

Misturo tudo num saco,
Mas gaúcho maranhense
Que pára no Mato Grosso,
Bate este angu de caroço
Ver sopa de caruru;
A vida é mesmo um buraco,
Bobo é quem não é tatu!

Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!...
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
Bajé, pixé, chué, ôh "xavié"
De tão fácil virou fóssil,
O difícil é aprender!

Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu caçanje!
Você sabe o francês "singe"Ivã,
Mas não sabe o que é guariba?
- Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.


Como dançar o Lundu, dança e canção de origem africana, pode ser enquisito (pertubador), mas a tarefa de escritor não é diferente, tanto uma quanto a outra pode tirar a pessoa acomodada do lugar. Basta chamar atenção para o diferente, na poesia ou no remexer do corpo, o som torna-se pujante. Ter a virtude de urubutinga, outro nome para o urubu-rei, entende o sotaque do caipira, das várias regiões brasileiras. Não precisa ser índio, vestir tanga para entender o caçanje, português mal falado, mal escrito, um dos dialetos crioulos falados em Angola. Conhece o Singe, macaco em Francês, mas guariba, o macaco brasileiro para que? Só sabe o que é da estranja, a cultura europeia, estrangeira é mais conhecida, inclusive na língua. Uma mistura de prosa com poesia, linguagem coloquial, sem métrica, cujo estilo mais livre e solto aproveita para introduzir o assunto do caipira, da fala brasileira, a miscigenação entre as pessoas, a diversidade e a busca de um lugar melhor para viver. A vida pode não ser fácil para ninguém, entretanto, a esperteza é uma saída no enfrentamento de qualquer exploração. Tanta luz nesta capoeira, outra dança a dos escravos, que fingiam estar dançando e era uma luta de defesa pessoal ao algoz, tal e qual numa gupiara, depósito de sedimentos nas encostas dos morros.   

Descortinar a brasilidade fazia com presteza ancorado na coragem, a partir de Macunaíma afirmou a especialidade. Determinação indubitável, no momento em que trata a arte e o artista. Infla o debate estético entre os antigos e os modernos, semelhante ao movimento de tradição europeia nos séculos XVII E XVIII. Nesta maré revolta modernista, Andrade almejava ir além da estética. A quebra definitiva dos espelhos fixados e dos insistentes reflexos desvirtuados do corpo original. O que é do outro é melhor?
Entra em cena a concepção de arte, o artista e o artesão, a arte individualista e contemplativa, a arte pela arte, a arte como fazer, como prática efetiva de trabalho, a figura do artesão fazendo as vezes de modelo e paradigma, a artesania, um “métier”, um trabalho, a arte não confundida com a ocupação das elites desocupadas. 

O “descobrimento” propõe o despertar das consciências adormecidas, publicado em 1927.

Abancado a escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da Rua Lopes Chaves
De repente senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! Muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.

Para tanto, precisava jogar água fria nestes anos de sono profundo, decide remexer no passado, na memória e nos arquivos, no intuito de compreender a tradição.No ensejo intitula-se “turista aprendiz”, no País natal. O então, etnógrafo,  realiza várias viagens “amadoras” iniciadas em 1925 na companhia dos amigos modernistas e restaura o acervo: afirma que as línguas em geral “precedem” efetivamente as suas gramáticas (Andrade 1980 a). Refundar o arquivo brasileiro com fundamento nomológico anticolonial. Portanto, partiria da construção singular da língua brasileira, diferenciando-se da língua portuguesa. A poética modernista passa a escrever em brasileiro.
Porém, como o ditado popular diz, que de poeta e louco todo mundo tem um pouco. Tanta teoria deveria ter uma pitada de ousadia. Supondo isto, o escritor assume uma atitude desvairada diante este acumulo de teorias e ideias.
Derradeira metáfora à loucura, esta que, potencializa o primitivo diante do europeu, o civilizado. Em tal fato, a constituição do arquivo da brasilidade  fica consumado.
“Todas as potencialidades estariam, então abertas para o futuro da tradição brasileira. A primitividade seria o grande trunfo para a constituição dessa tradição, pois todos os percursos seriam possíveis a partir dessa virtualidade potente.” (Birman, Joel)
Engenhosidade elevada a enésima potência foi criar o anti- herói, em uma das suas maiores obras, Macunaíma. Este suposto “herói” desprovido de caráter porque esqueceu a tradição e o arquivo da brasilidade, dormia como os outros demais brasileiros.

"No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. [...] 

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro: passou mais de seis anos não falando. Se o incitavam a falar, exclamava:-- Ai! que preguiça!. . . e não dizia mais nada.[...]
Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.
Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto era sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que 'espinho que pinica, de pequeno já traz ponta'." 

Seu mais certeiro e derradeiro golpe foi colocar Macunaíma em um trajeto imaginário para descoberta do Brasil, no entanto quem descobriu o Brasil?

Mário (s) de Andrade!

Artigo acadêmico completo ver no link serbrasil Artigos, crônicas e publicações.
http://serbrasil.blogspot.com.br/p/artigos-cronicas-e-publcacoes.html

 Agradecimento à professora Suzana Scramim da disciplina O Moderno na Literatura, PPGL.  
Agradecimento  às professoras Silvana de Gaspari e Andréia Guerini,  respectivamente, disciplina Literatura Italiana I e II, graduação DLLE.
Mestranda Flavia Wass do PPGL Programa de Pós Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina e graduanda em Letras e Literatura Italiana. 

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