Baudelaire e o amor civilizatório ocidental


Por Flavia Wass jornalista


Baudelaire e o amor civilizatório ocidental

A inspiração pode vir de Lésbia, a dama romana de Catulo (87-54 a.c) ou perpassar a dama do amor cortês concebida pelos trovadores provençais, nas cortes medievais, mas Charles Baudelaire em sua “Uma passante” mantém o tripé da poesia lírica nas entrelinhas: o amor, a impossibilidade e a idealização do ser amado. Assim como, avança colocando-se na função e sentimento do próprio personagem, examinando “o homem da multidão”, acompanhando, observando e criticando a sociedade industrial do século XIX. Aquele, que se opunha ao realismo apregoado pelo “status quo” burguês e usa de simbolismos para defender os deixados à margem, consegue conversar com seus leitores, que assim como ele estavam incomodados com a velocidade alucinante da massa.
“Havia o transeunte, que se enfia na multidão, mas havia também o flâneur, que precisa de espaço
livre e não quer perder sua privacidade. Que os outros se ocupem de seus negócios: no fundo, o indivíduo só pode flanar se, como tal, já se afasta da norma. Lá onde a vida privada dá o tom, há tão pouco espaço para o flâneur  como no trânsito da City. Londres tem seu homem da multidão. Nante, o ocioso das esquinas - uma figura popular em Berlim, no período da Restauração - é sua antítese: o flâneur parisiense seria o meio-termo”. (BENJAMIN, Walter pg. 103-149, 1989)

Esta impossibilidade de flanar ou fluir diante desta modernidade, o progresso maquinário e mecânico organizando de maneira, até antinatural, a vida das pessoas, que poderia ser mais bucolicamente romântica, nem os deuses da antiguidade conseguiram resolver. Em “A revolução das mulheres”, uma das comédias mais famosas do autor Aristófanes, aquela sociedade grega apresentava fatores de desenvolvimento, onde a democracia foi constituída, porém deixando as mulheres insatisfeitas e sem voz ativa de participação à exemplo do que acontece, até hoje na contemporaneidade, apesar das várias conquistas aparentes. Nesta ficção liderada pela eloquente Valentina, impondo uma nova constituição, as mulheres governarão a cidade de Atenas, resolvendo o problema daquelas discriminadas, as feias.
Será que aquela passante em Baudelaire, embrenhada na multidão não está representando todas as mulheres inatingíveis, ao longo da história civilizatória ocidental? ”A rua ia gritando e eu ensurdecia”, inicia o poema.  Um grito de liberdade ensurdecedor se fazia necessário quando escreve àqueles poucos conscientes que conseguem ver, ler e ouvir. "Baudelaire teve em mira leitores que se veem em dificuldades ante a leitura da poesia lírica. O poema introdutório de As Flores do Mal se dirige a estes leitores. Com sua força de vontade e, consequentemente, seu poder de concentração não se vai longe; esses leitores preferem os prazeres dos sentidos e estão afeitos ao spleen (melancolia), que anula o interesse e a receptividade. É surpreendente encontrar um poeta lírico que confie nesse público - de todos, o mais ingrato. É claro que existe uma explicação para isso: Baudelaire pretendia ser compreendido; por, isso dedica seu livro àqueles que lhe são semelhantes.
O poema dedicado ao leitor termina com a apóstrofe:”. - Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!" (BENJAMIN, Walter pg. 103-149, 1989. A narrativa na primeira pessoa cria o tom de intimidade, o coloca dentro do contexto, semelhante ao “O homem na Multidão”, que traduziu do escritor americano Edgar Allan Poe.
detendo-me bem em frente ao velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se”. 
Afinal, todas estas mulheres, na história poética ocidental poderiam ser  “Uma passante”? Como as inatingíveis, Valentina, Francesca da Rimini, Lésbia, Beatrice, Laura e tantas outras, porém o mais curioso, que verifica-se no amor de Baudelaire: ela passa literalmente pela massa moderna, divina, intocável, angelical, rainha, diva, fugidia sem nome ou em nome ao amor vindo do concreto cinzento e às “flores do mal”, desaparece na multidão não deixando rastros.


  


Agradecimento à professora Meritxell Marsal da disciplina Literatura Ocidental da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC.  

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